quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Texto Incrível de Adelaide Ivanova... para refletir em tempos de SPFW


ADELAIDE IVANOVA

“Bem que eu queria interagir mais, me envolver mais, mas o que eu gosto mesmo é de ficar olhando para elas”. Essa frase bem que podia ser minha, mas é Annie Leibovitz falando sobre as fotos que não faz de suas filhas. Eu vi a exposição retrospectiva dela, em Madrid, e me senti tão identificada com essa frase, pela minha não-vontade de perder tempo fazendo outra coisa que não seja olhar o homem que eu amo. Não se fotografa o infotografável (ainda que tenha fotógrafo que diga ser capaz de fazê-lo). Isso eu aprendi com Annie e com Armin.
Pela primeira vez na vida um ano chega ao fim e eu não penso “Graças a Jah, acabou”. É que eu sinto que o universo foi justo comigo, e eu só queria que 2009 se arrastasse mais um pouco (uns seis séculos a mais, talvez?).
E não quero dizer que só teve coisa boa. É que eu, afinal, consegui ver um balanço – quando uma coisa ruim acontecia, dava para ver para quê; quando uma coisa massa acontecia, dava para ver por quê. Pode não ter sido nada grandioso, talvez apenas eu tenha mudado.
Literalmente, ao menos. Comprei uma passagem barata que não dava direito nem a escolher o lugar no avião e fui dar um rolê bem hippie sujo nas Europa. Tirei três meses de licença maternidade pra dar de mamar a mim mesma e não levei nada além de um par de Havaianas, meia dúzia de vestido véio e uma câmera de filme. Não levei xampu e nem creme e, uma vez no Velho Mundo, viajei tudo de trem e ônibus, bem seventies (e até bicho-de-pé eu peguei).
Eu, que durante tanto tempo trabalhei com “as moda”, queria me desapegar das coisas que eu achava, antes, que não conseguia viver sem. Abri mão de sapato, da Kerastase e até da minha profissão. Decidi que eu não ia fotografar nada que realmente não fosse uma foto.
A gente clica tudo e depois não sabe nem onde ficava aquilo, nem por que fotografou. A gente fica com uma caixa de sapato – ou um HD – cheio de imagens que não dizem nada e que ninguém nunca mais vai ver, nem vai se importar.
E essa minha vontade ganhou fundamentação teórica (HA!) quando eu vi a exposição de Annie Leibovitz. Nunca iremos ver as fotos-com-o-coração que Annie faz de suas herdeirinhas. São lindas porque são escolhas.
Eu imitei Annie e segui fazendo isso toda minha a viagem. Tirando não-fotos que vocês nunca vão ver, mas que eu nunca vou esquecer dentro de uma caixa de sapato cheia de traça.
De quê adiantaria tirar foto de cada um dos meninos de Barcelona que eu vi? Só porque me dava vontade de aplaudir quando eles passavam? Na foto nunca viriam os palavrões que eles diziam, nem o cheiro dos bocadillos, nem o vento do Mediterrâneo. E eu ficaria frustrada por aquela foto não ter um terço do charme das minhas lembranças. E a culpa não é da fotografia – é da ganância que às vezes toma conta de um fotógrafo.
No mesmo dia que cheguei à Europa, conheci Armin. Ele redesenhou tudo que eu tinha planejado – para a viagem, para a vida. Nunca não-fotografei tanto alguém. Racionalmente, eu deveria ter clicado tudo, porque sabia que nos separaríamos. Mas preferi ficar como Annie: só olhando e olhando e olhando praquele menino existindo.
Quando voltei para São Paulo e revelei os filmes, uma parte abilolada de mim me martirizou por não ter mais fotos dele. Por dois segundos autoflagelativos, se arrependimento matasse, eu seria Susan Sontag.
No terceiro segundo, lembrei que conseguia saber exatamente porquê e quando eu fiz cada uma das fotos de Armin. E sabia dizer exatamente onde ficava aquela meia dúzia de imagens: in meinem Herz.
Falando em Herz, quando eu fui encontrar com ele na Alemanha, Berlim se preparava para celebrar os 20 anos da queda do muro. E lá eu descobri um monte de coisa sobre muros – os de verdade e os metafóricos.
O que pouca gente sabe (e eu também só descobri quando cheguei lá) é que die Mauer, na verdade, circundava a parte oeste da capital alemã. Mas era “os pessoal” do leste que não tinha liberdade (isso eu já sabia de antes, não sou tão burrinha assim).
Portanto, quando o muro foi derrubado, libertou não quem estava do lado de dentro dele, mas quem estava do lado de fora. I couldn’t help but wonder: “liberdade, portanto, é poder ir para dentro”. Só não me pergunte do quê, que eu ainda não sei.
Eu tive que percorrer 10 mil quilômetros para entender que meu lugar preferido no mundo não estava no Mapa Mundi. E, ao contrário do que eu mesma queria como desfecho desse texto, também não estava dentro de mim.
“A fotografia ganha um significado novo quando alguém morrer”. Isso é o que Annie diz a respeito das fotos que fez de Susan Sontag (com quem ela namorou por duzentos anos), quando esta estava doente. Eu, que já conto em dedos de duas mãos a quantidade de pessoas queridas que perdi nessa vida, digo que não é somente a relação com as fotos que você fez da pessoa morta (ainda viva!) que muda. É a relação com a pessoa como um todo. É tipo aquela moça sabida, Lygia Fagundes Telles, que diz que a memória é uma invenção.
E se a morte é a mãe da distância, e se a distância é mãe da memória, e se é nela que minha imaginação pode tocar o terror, abandono toda a sabedoria espiritual e assumo: meu lugar preferido no mundo não está dentro de mim. Está bem aqui, nesse porta-retrato, e tem 1,90 e cabelo comprido.


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